sexta-feira, 22 de março de 2013

Alienação

O que é alienação para você?

Eu estava hoje, voltando do ortopedista, em um ponto de ônibus aguardando, quando vejo uma mulher lendo compenetradamente, com seus óculos na ponta do nariz e o par de óculos escuros na testa, o seu exemplar da série Cinquenta Tons de Cinza. Não foi a primeira vez que esse fenômeno aconteceu comigo em minhas desventuras de transporte urbano coletivo e acredito que aconteça com muitas pessoas que, algumas vezes, fazem piadas ou comentários elitistas sobre o ocorrido, como se fosse uma forma estúpida de leitura. Pode até ser, mas não vou entrar nos méritos. Acontece que me fiz essa pergunta que venho refletindo há tempos: o que é alienação?

Quando fazia minha segunda série e tinha meus 8 anos de idade, minha irmã me falou sobre um livro que estava muito famoso sobre um bruxo que se chamava Harry Potter. Eu, nessa época, não acompanhava muito telejornais, internet não era o utensílio que é hoje nos lares brasileiros e o fluxo de informação não chegava até a minha casa, ainda mais para uma mente de 8 anos de idade. Depois de muita insistência para que minha mãe comprasse, comecei a ler a Pedra Filosofal e logo em seguida emendei as sequências, relendo tudo enquanto não eram lançados os últimos volumes e assim foi até o final da minha adolescência. Mas, quando comecei a ler o primeiro capítulo que arrisco-me dizer que se chama (juro que não estou com o livro do meu lado porque ele está muito bem guardado) "O Menino que Sobreviveu", não imaginava a dimensão que estava se tornando tudo isso, só percebendo quando vi, certo dia, no Jornal Hoje, uma reportagem sobre o lançamento do filme e a euforia dos fãs na Inglaterra e Estados Unidos.

Durante essa caminhada de início de leitura deitado na minha antiga cama no Setor Pedro Ludovico em Goiânia até o lançamento do último filme, ouvi muita coisa a respeito sobre o mundo criado por J. K. Rowling, a maioria positiva, é verdade. Mas sempre houve análises mais extremistas que classificavam Potter como um amigo próximo do demônio e um caminho para levar os jovens para o buraco do inferno. Claro que isso nunca me atingiu.

Onde quero chegar contando essa minha saga com o Harry Potter é o meu sentimento de gratidão por tudo aquilo que vivi nas páginas durante anos. A gratidão não é só pela incrível história construída que deixou saudade e sede de mais daqueles personagens que se tornaram íntimos no meu imaginário. A gratidão é, principalmente, por ter aberto as portas da leitura de coisas variadas como forma de lazer e distração. Hoje eu tenho discernimento o suficiente para saber que Harry Potter não é a literatura mais extraordinária do mundo, mas, com certeza, é a de mais valor na minha vida por ser a "mãe" de todas as outras posteriores.

Depois disso tudo, volto a mulher no ponto de ônibus e sua leitura apaixonada por Cinquenta Tons de Cinza. Como foi o mais recente sucesso literário dos últimos meses, ainda mais numa leva que vem com o sucesso anterior da saga Crepúsculo, é um assunto comentado. Hoje o Ibope em cima da trilogia Cinquenta Tons está em um período de latência na mídia, mas em breve eu já vejo o quadro mudar com o lançamento do filme com base na obra. Até lá, mais mulheres vão ler e outros vão criticar. Não vou generalizar o perfil das pessoas que criticam nem as que leem, mas vou citar alguns específicos.

Primeiramente, é muito fácil para um jovem de classe média que estudou em uma escola boa e teve um ensino elitista começar a querer classificar o que é bom e o que é ruim. Logo, logo, o jovem que se enquadra nesse perfil começa a virar o defensor ferrenho de certas ideologias quentes das redes sociais. Daí à expor o seu desgosto pela alienante televisão, por filmes hollywoodianos e também pelos livros de cultura inferior é um pulo. Tudo bem, é uma opção dessas pessoas acharem tudo isso, somos livre, ainda mais na internet.

Outro grupo que critica as leitoras de Cinquenta Tons são o de jovens rapazes que gostam de dizer que o livro não passa de perversão gratuita em uma história rasa e que é uma vergonha, chegando a ser deprimente.

Ok, voltemos para a mulher dos óculos de grau na ponta do nariz e dos óculos de sol na testa. Ela estava sentada em uma leitura com uma expressão cansada e ao mesmo tempo serena. O ponto de ônibus estava cheio e todos ali, tirando o burguês que estava usufruindo de um plano de saúde para uma consulta no pezinho dolorido em seu ortopedista, pareciam estar vindo de uma longa jornada de trabalho. Porém, a única pessoa ali em sua leitura era a mulher de dois pares de óculos. Talvez Cinquenta Tons não seja o livro mais completo em repertório, mas a magia que ele está proporcionando talvez seja única para muitas mulheres da chamada Nova Classe C. Claro que estou partindo de um pressuposto preconceituoso de que essa mulher, assim como todas as outras dos ônibus que vejo todos os dias, não tinham o hábito de leitura. Mas esse pressuposto é arquitetado em um fato empiricamente observado por mim: nunca antes vi tantas pessoas lerem nos ônibus, sendo algo raríssimo (salve os estudantes indo para suas universidades, mas, nesse caso, estou me restringindo a classe trabalhadora que depende do transporte coletivo todos os dias) e curiosamente este é o livro que está em, no que vi até hoje, quase todos os casos. O que essa brasileira pode estar passando pode ser o que eu passei nos meus 8 anos de idade. Quando tinha 8 anos eu já tinha lido outros livros, todos eles muito coloridos, cheio de figuras e moral no fim da história, é claro, diferente das páginas adultas sem figuras e com letras corridas de Harry Potter. Ela pode ter lido várias outras coisas, mas nada que a fizesse se apaixonar por esse hábito realmente, ao ponto de qualquer intervalo de tempo ser irresistível para matar a sede de saber o que vem adiante nas próximas linhas e páginas.

Porém, Cinquenta Tons não é um fenômeno apenas da Nova Classe C. É uma febre que está atingindo as mulheres em geral, até aquelas mais estudas, as mais velhas e as mais novas (que podem ter começado a gostar de ler com o Harry Potter assim como eu). Nisso, os críticos de plantão - praticamente se resumindo ao gênero masculino mesmo - das redes sociais não perdoam, acham um absurdo uma mulher com estudo se achar dentro das páginas dessa série. Absurdo, ao meu ver, é tentar entender as sensações de alguém sem ser aquela pessoa. Um dia tentei entender o que se passava na cabeça de algumas garotas do colégio e li Crepúsculo. Continuei sem entender e fui para o próximo livro da saga e desisti no segundo capítulo com a conclusão de que aquele livro não era feito para mim, mas nem por isso quer dizer que era um livro ruim, simplesmente eu não era o publico alvo. Nisso, nem quis me aventurar para saber o teor exato das páginas de Cinquenta Tons. Não dá para subestimar o sucesso de um livro. Por mais que o número de não-leitores de uma obra seja maior que o de leitores, atingir uma grande parcela da sociedade e um nicho tão específico e tão variado como é o feminino, é uma verdadeira conquista para poucos.

Estou quase chegando ao ponto da alienação, enfim.

Quanto aos rapazes que falam que é uma perversão sem vergonha uma mulher (ainda fortemente reprimida na sociedade brasileira apesar dos avanços) ler Cinquenta Tons, faço uma pergunta: com que frequência você faz uma busca de pornografia na internet?

Para os críticos esclarecidos quanto ao gosto refinado de filmes, tipo de leituras e renega a televisão, eu repito o meu respeito por essas escolhas, mas parto para a reflexão sobre as minhas conclusões relativas ao conceito de alienação. Hoje, geralmente, vejo a maior parte das pessoas que falam sobre alienação, exporem suas opiniões na internet, muitas vezes nas redes sociais (assim como eu estou fazendo agora). Mas, será que a sensação de liberdade que temos de escolha de entretenimento, repertório, informação, educação, entre outros, que temos disponíveis na internet não seja a nova alienação do século XXI? Será que não seria a mais nova caverna de Platão?

A conclusão que chego é que o contraponto para o tanto de coisa que temos disponíveis em um mesmo lugar é a palavra que é usada muito para os vencedores do novo século: foco. Por exemplo, um estudante que almeja passar em um vestibular concorrido em uma universidade pública. Será que as escolas de ensino médio não subvertem o sentido real do aprendizado, transformando esse aprendizado em uma grande indústria de aprovados no vestibular em um sistema "alienante" em que só se pode pensar nas questões do vestibular e não nas reflexões mais profundas da vida? Será que é certo deixar de lado o ser humano que é o estudante jovem, transformando-o em apenas um número contabilizado no índice de aprovação? E os empresários bem sucedidos? Será que o foco nos negócios e na carreira  não seriam a alienação na lógica de formar grandes vencedores no mercado de trabalho acima de qualquer coisa, deixando de lado valores familiares e sentimentais?

Nessas perspectivas, creio que a tendência é que, cada vez mais, as universidades federais sejam ocupadas por burgueses que já se sentem os vencedores - vide comemorações por aprovações como a minha - e cada vez mais solteiros morarão sozinhos por escolherem a carreira de sucesso em detrimento a uma realização familiar. Que bom que existe o sistema de cotas para mostrar o outro lado do Brasil para quem sempre foi acostumado em não abrir os olhos para outras realidades transformando universidades verdadeiramente em um universo de culturas.


E a pobre, velha e renega televisão? Será que é tão pobre de repertório como dizem por aí? Será que é tão digna de represália dos intelectuais de plantão? A pobreza não estaria na superficialidade de falar mal dela na internet em palavras que lidas quase da para ouvir soarem em uma só voz como um grande senso comum, assim como os protestos que só ficam nas redes sociais? Filmes de Hollywood são ruins simplesmente por que dão certo economicamente? 

A linha entre os esclarecidos e alienação é tênue. Não me ponho no lado dos esclarecidos nem dos alienados. Simplesmente porque todo mundo é um pouco dos dois. O sistema, a internet ou Papai do Céu é tão bom que nos deu a liberdade de escolher a nossa alienação. Será mesmo que a ignorância é uma benção?

O importante, creio, é sabermos dosar a intensidade de alienação que vamos escolher no nosso dia-a-dia, tanto no que vamos assistir, no que vamos consumir e no que vamos ler. E vamos fazer isso não para atender a lógica de um sistema estabelecido. Vamos fazer isso unicamente para conseguirmos viver felizes. E o sistema é tão bom que podemos usar o próprio sistema para mudar o sistema, já diria um grande amigo meu.

Quando chego em casa depois de um dia longo numa quarta-feira, por exemplo, eu só quero sentar no sofá e ver meu futebol em paz, não interessa se o juiz é comprado, se o campeonato já tem um campeão definido e se a falta de tecnologia no esporte deixa o resultado injusto muitas vezes. Se nada disso existisse (que bom que existe) perderia o sentido de eu me sentar para acompanhar o jogo porque faltaria motivos para eu xingar e aliviar a tensão do meu dia. Não me sinto alienado por isso e nem esclarecido por saber das possíveis farsas por trás do jogo.

Se ler Cinquenta Tons de Cinza for algo de pessoas alienadas, pouco esclarecidas, instruídas indevidamente ou simplesmente com um péssimo gosto de leitura, ninguém tirará o prazer daquela mulher no ponto de ônibus em sua leitura em um momento de folga no fim do seu dia.

Para terminar esse prolixo texto, deixo outra pergunta: então, o que é felicidade?