segunda-feira, 20 de agosto de 2018

Dúvida

Tem dias que me pego distraído no meio da rua e percebo que não me lembro de nada do que fiz antes do agora e depois de ter acordado. E eu estou simplesmente ali, seja lá onde eu estou.

Vou aos poucos tentado fazer um check list mental das coisas que eu fiz ou deveria ter feito ou deixei de fazer, sem ter certeza em qual das opções acima essas coisas estão.

Dar comida dos gatos e tomar banho provavelmente estão nas coisas feitas – meu cabelo está molhado e gatinhos sempre em primeiro lugar.

Passar desodorante e escovar os dentes eu espero ter feito, por enquanto não parece que estou fedendo.

Tirar roupas da máquina, desligar o gás da cozinha e trancar a porta de casa provavelmente não fiz e nunca saberei se fiz se não prestar atenção no trânsito e pisar no freio antes do carro bater.

Acidente evitado, percebo que estou indo para a agência. É então que me dou conta que tenho um emprego, trabalho em uma agência e não faço a menor ideia porque sou publicitário, uma profissão altamente sádica e muito menos criativa e descolada do que pensam por, pelo menos no meu país Goiânia ou no meu Fantástico Mundo de Bobby.

E quando tento terminar essa reflexão a respeito da minha escolha, vejo que já passei na padaria, já comei meu café da manhã inflacionado, já queimei a boca com o café preto e que já tenho várias abas de Word abertas com textos incompletos de e-mails makerting, tags de brindes e banners para eventos em Patos de Minas sobre agronegócio – logo eu, criado no concreto e com pouca vivência em chácaras e fazendas na infância, sem histórico de um braço quebrado sequer por cair do pé de goiaba.

Aí me recordo de um dia de chuva na pamonharia em que eu cresci e que o movimento estava baixo e então genialmente criei uma promoção de um cambo de pamonha + Pitchula por R$ 2,50 – afinal, quem não gosta de uma pamonha com Pitchula em dia de chuva?

Recordo-me também do dia que peguei a revista da Avon da minha mãe e fui vender na escola. E do dia em que ela fez uma tantão de cocada e saí na rua vendendo, mesmo sem saber que cem centavos equivale a 1 real.  E tem também o dia que em um trabalho de Língua Portuguesa da fessora Cláudia devíamos fazer um telejornal e eu fiquei responsável pela parte dos intervalos comerciais e todo mundo achou o máximo.

É isso! Nasci pra isso! Vender é minha especialidade desde sempre, nunca tive dúvidas disso! Mas enquanto eu pensava, os textos dos e-mails marketing, da tag de brindes e banners do evento em Patos de Minas voltaram com reprovação.

É então que me lembro dos calotes dos freelas que levei, das propostas indecentes de permuta que recusei (mas quase aceitei), das noites viradas e fins de semanas perdidos com trabalhos reprovados e que, quando aprovados, aprovados graças ao brilhante trabalho do atendimento, mídia e planejamento que salvaram o trabalho apenas médio da criação.

Mais uma freada brusca (no carro e na cueca) para perceber que estou voltando para a casa e preciso me lembrar de não atropelar a velhinha.

A porta de casa está trancada, pois não consigo achar a chave ou ao menos encaixá-la do jeito certo na fechadura. O gás está desligado, pois nenhum gato está morto. A roupa, porém, está mofada na máquina e é claro que nem me lembrei de lembrar nas luzes que ficaram todas acesas e das janelas que ficaram todas abertas deixando a chuva gentilmente entrar.

Mas pouco importa, pois nem percebo que já acordei, o que significa que já dormi sem perceber, com a televisão ligada e a roupa de ontem, inclusive.

Agora já não tenho dúvida de mais nada, a não ser de tudo.