quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

Oi, sumida


Já faz anos que estou solteiro. E o que é vida de solteiro de fato? Puxar papo com a gatinha (ou contatinho, como dizem hoje em dia) no Whatsapp que você não fala faz tempo? Baladinha top? Cada fim de semana com uma(s) mulher(es) diferente(s)? Surubetis?! Neca de pitibiriba. 

Meus amigos, quem pensa isso é muito ingênuo, é o famoso nenas, juvenil, café com leite. Nem criança pensa nisso mais. Em tempos de smartphones e aplicativos, só se é solteiro oficialmente com o Tinder devidamente instalado no celular.

Para quem não sabe e não está querendo ir ao Google descobrir do que se trata essa geniosa engenhoca, Tinder é uma espécie de cardápio de pessoas em que você passa o dedinho para direita o que gosta e descarta com dedinho para esquerda quem não é do seu agrado. Isso mesmo! A diferença é que você também está no menu de outra pessoa (no meu caso, estou mais para um prato do dia do R.U. do que uma carta de vinhos) e é de graça comer, caso esteja de comum acordo para os escolhidos.
Antes, é claro, é preciso montar o seu perfil, que é como as pessoas vão te ver no cardápio.

Vamos para escolha das fotos: esconder a barriga saliente, isso! Atenção com a foto de óculos pra dar tom de intelectualidade, beleza. Mais atenção ainda com a barba hipster da moda, a mulherada gosta. Estátua da Liberdade ao fundo para mostrar que sou viajadão. Uma de camiseta lisa, uma de xadrez, uma caribenha para deixar descolado... Opa, essa não, tá mostrando que tá ficando careca. Essa aqui de 2011 passa, né? Feshow! Tudo pronto para ingressar nesse universo de pura azaração.

E por falar em azar...

A cada dedinho pra esquerda, mais acho que baixei o aplicativo errado. Melhor conferir se não baixei o “Travestinder”. Se bem que sempre tive curiosidade, é a minha grande chance. Bom, aparentemente é o aplicativo certo. Olha só! Essas moças são do meu agrado. Por que ninguém faz combinação comigo? Acho que o meu app estava com defeito, só pode. Onde manda e-mail para reclamar?

Quatro horas e nada de match.

Mas tá legal continuar vendo as futuras médicas, futuras advogadas, futuras veterinárias e futuras engenheiras – incrível como na descrição nunca é “quero ser isso mas ainda não sou” e sim “futuramente serei se Deus quiser”.

Eita, essa aqui é lá da faculdade. Essa aqui é do trabalho. Caramba, pensei que minha chefe era casada. Essa aqui estudou comigo no jardim, já dei até frentinha na fila do lanche. Essa outra aqui é amiga da minha ex. O que minha ex tá fazendo aqui?! Será que dou like? Por que essa menina tá fazendo biquinho? Essa outra também. Essa outra também. O que essa aqui está procurando no chão? Por que essa outra está fantasiada de cachorro? E por que caralhos essa tá beijando um cara na foto de perfil? E essas frases motivacionais onde deveria ser o “quem sou eu”?

Por falar nisso, um parêntese para essas ótimas descrições de perfil:

"Oii quero amizades sinceras e coloridas. Te desafio a começar a conversa com algo mais interessante do que oi".

Será que serve um olá?

"Não quero alguém que me complete, pois já sou completa. Quero alguém que me transborde."

Olá, me chama de pia entupida e jogue suas vasilhas do almoço aqui em cima, sua linda.

"Estou a procura de novas amizades. Quem sabe, um relacionamento. Não estou a fim de sexo casual. Nada contra, mas não faz meu tipo."

Nem o meu, Jurema, nem o meu.

"Bacana. Nada de nudes kkk. Nem segundas intenções pfv quero conhecer alguém pra conversar."

Tenho um ótimo terapeuta que é muito bom ouvinte e tem ótimo papo. Será que recomendo?

“Não sei o que estou fazendo aqui”.

E eu que nem sei o que faço nesse planeta? Aliás, duvido muito da minha existência. Na verdade eu sei o que tô fazendo aqui e você também. Acho que vou dar like pela profunda reflexão que me causou.

Já tô aqui tem uma semana e eu só quero ver uma gatinha indie/hippie/hipster/fora Temer com a descrição com um “bora tomar uma”.

Um superlike! O que é superlike? Como que faz agora? Não sei, mas acho que fiz cagada porque a menina sumiu. Droga! Sou muito panaca mesmo.

Opa! Deu match. O que escrevo agora? Já sei:

- Bora tomar uma?

Tá parecendo que não.

Olha só! Outro match! Acho que falta um pouco de ousadia:

- Que bombonzinho, hein, pai...

Esperando resposta. Será que é normal demorarem três dias para responderem?

Acho melhor voltar pro Whatsapp.

- Oi, sumida.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

Chuluva

Duas situações esta semana me levaram a refletir o que é o crescer para uma criança.

Domingo dei aquela sorte de estar zapeando a TV e encontrar um filme começando naquele instante. Era a animação da Pixar “Divertida Mente”. O filme consiste no que se passa nos bastidores na cabeça de uma menina, Riley, em suas primeiras experiências com o mundo. O que vou relatar a seguir mais tem a ver com o enredo e uma interpretação de uma criança grande que sou a respeito da animação e do que um spoiler.

Sentimentos como alegria, tristeza, medo, raiva e nojo são muito claros e personificados na cabeça de Riley, assim como as referências que circulam o seu mundo e a sua rotina, se tornando ilhas. Na medida em que em que ela cresce, pensamentos e lembranças são armazenados. Quando as prateleiras de pensamentos estão cheias e caem em desuso, elas são esvaziadas para o lixão da mente. Tudo muda, porém, quando seus pais decidem se mudar de Minnesota para São Francisco.

Coincidentemente, esta mudança se dá quando Riley está em sua pré-adolescência, prestes a entrar em uma fase de mudanças, incertezas e transformações: aos poucos, a infância inevitavelmente será deixada de lado. Velhas brincadeiras são esquecidas, a formação moral é questionada e comportamentos sapecas típicos de crianças são esquecidos. As ilhas começam a se desmoronar.

Da mesma forma, sentimentos antes tão bem definidos ganham nova roupagem: alegria e tristeza nunca foram tão confundíveis, a raiva ganha mais poder de decisão do que o medo e o nojo começa a moldar certas relações sociais. Algumas habilidades perdem força e outras habilidades surgem para atender a demanda de novas necessidades sociais. A mente, da mesma forma, ganha novo painel de controle, uma versão expandida para novos conteúdos antes jamais cogitados. Novas ilhas surgem como referência de vida.

Riley estava a um passo de apertar o botão da puberdade.


Dias antes de assistir esse filme, na semana passada, uma amiga me perguntou se quando criança eu brincava de ser publicitário. Parei para pensar nas minhas brincadeiras. Em um primeiro momento, lembro de brincar solitariamente com meus carrinhos e bonecos no chão da sala da minha antiga casa no Setor Pedro Ludovico.

Por um estalo, busquei nas prateleiras empoeiradas das minhas lembranças uma quase esquecida, dá época em que eu passava as férias em Natal na casa dos meus avós. Eu e minha prima Fernanda costumávamos ir até o meu antigo quarto, que virou uma espécie de quarto de hóspedes e escritório do meu avô (o homem mais velho que eu conhecia na época) para buscar livros e revistas para brincar de banca de jornal. Nós mesmos confeccionávamos as cédulas de dinheiro, com papel sulfite, giz de cera e tesoura. Por vezes, eu era o dono da banca e ela era a cliente. Quando enjoávamos das nossas funções, mudávamos de posto.

Quando consegui resgatar essa lembrança, me peguei sorrindo e bateu uma saudade inesperada dessas brincadeiras. E me perguntei também quando foi que parei com elas, quando deixei de brincar com os bonecos que sempre dormiam junto comigo na cama, quando deixei a futura e promissora carreira de melhor vendedor de revistas do Bairro do Bom Pastor para trás. Sinceramente não me recordo e não encontro a data exata em nenhuma das prateleiras da minha mente.

Mas uma outra brincadeira, talvez a mais incrível de todas, também aconteceu nas férias que passava em Natal.

Minha família é uma tradicional família brasileira: pai com filhos fora do casamento original, irmãos com grande diferença de idade, mudanças de cidade e distância geográfica. Nestas aventuras, fui tio muito cedo. Quando eu tinha três anos, minha irmã Alessandra teve seu filho, Juninho. Foi difícil, mas creio que consegui cumprir árdua missão de ser tio tão precocemente. Imagina, uma criança de seis anos ter que explicar para uma de três o jeito certo de brincar de carrinhos? Confesso que em alguns momentos pensei em desistir da minha função do dever.

Com o tempo, infelizmente, acabamos perdendo este contato e esta interação.

Anos mais tarde, foi a vez da minha irmã Miriam ser mãe. Quando ela engravidou, eu tinha nove anos. Dessa vez pude acompanhar, mesmo que na distância, o desenvolvimento da Laiz, desde as ultrassonografias, até seu nascimento e parte do seu crescimento.

Tive o primeiro contato com a Lolly quando ela já tinha por volta de três anos eu dos treze. Pensei comigo mesmo “sobrinho de três anos eu já tiro de letra”. Pobre criatura ingênua que eu era. Ela era uma criatura muito mais esperta e astuciosa. As ilhas dela estavam melhores estruturadas do que as minhas. Logo vamos entender o porquê.

Eu, na prática, era totalmente sem jeito. Ela era um projeto de menina paulistana mimada, com um sotaque já forte (imagine este “forte” com aquele “r” paulistano da MTV). Quando se sentia desconfortável ou algo não vinha como ela queria, a Tristeza entrava em ação, tomava o painel de controle e ela chorava. Ao mesmo tempo, ela era extremamente divertida e lúdica. Como não se encantar pela pequena Laiz?

Íamos muito à praia. Ela usava pequenas chinelas Havaianas que tinha desenhos de uvas. Em uma tentativa de fazer amizade, a ajudei a calçar os chinelos, cheirei seus pequenos pés e fiz careta. Ela me perguntou “o que foi?”. Eu disse “chuluva!”. Ela estranhou: “chuluva?”. Ri por dentro e disse. “É, chulé de uva”. Ela riu por fora. Na mosca: eu começava a ganhar território.

Ao conseguir ganhar pontos, ganhava também a responsabilidade de ficar mais tempo com a pequena e dar mais descanso aos pais e avós. Uma dessas tarefas foi tentar fazer com que ela cochilasse após o almoço. Sugeri o desafio do jogo da imitação. O jogo consistia em, cada um em sua vez, propor alguma imitação. De gatinho a leão, de cachorro a dinossauro, quem imitasse melhor, ganharia o ponto. Em uma determinada rodada, malandramente propus o desafio de quem imitava melhor alguém dormindo. Ela deitou na cama, eu no chão e começamos o fingimento. Depois de cinco minutos, prevendo que meu plano infalível tinha funcionado, levantei e fui orgulho dizer para Mirinha que eu consegui colocar a Laiz para dormir. Nosso triunfo não durou trinta segundos quando ela apareceu na porta prontamente acordada. Falhei.

Outro dia, indo à praia, sentei no banco de traz do carro ao lado da cadeirinha de criança em que Laiz estava e comecei a brincar com ela como se ela fosse um piano e disse “nossa, esse piano está enguiçado, não faz barulho”. Rapidamente ela protestou “eu não sou um piano!”. Eu disse “se não é um piano é um teclado”. Mais protestos “eu não sou um teclado!!”. Parei. A encarei e a perguntei “ué, então o que você é?”. A resposta veio feliz da vida “sou uma menina!”. Nessa saímos empatados.
 
Na praia, a marra e a manha da pequena Lolly continuavam. Fiquei brincando com ela, fazendo castelos de areia, enquanto minha irmã e meu cunhado saíram para caminhar um pouco. Ao perceber que os pais não estavam por perto, ela entrou em desespero e a Tristeza mais uma vez entrou em ação. Ela chorava e dizia que queria os pais. Impotente, tentei a acalmar propondo para irmos procurá-los. Ela topou e segurou a minha mão.

Naquele instante ocorreu incrível dentro de mim, vendo o quanto uma criaturinha daquele tamanho poderia cativar.

Poucos metros de caminhada depois, a danada reclamou que a areia estava quente e que estava cansada. A coloquei no colo e a carreguei mais como um saco de batatas do que como a menina-piano que ela era. Ponto para Laiz.

Depois daquele verão, algumas semanas depois, completei catorze anos e vivi, talvez, o primeiro ano de transformação do que sou hoje. Provavelmente foi nessa mesma época em que parei de brincar com carrinhos e bonecos. Provavelmente, depois dessas férias, nunca mais brinquei de banca de jornal com a minha prima, se é que nessas férias ainda brincávamos disso.

Demorei alguns anos para reencontrar a Laiz. Ela já estava grande. Não era mais uma menina mimada, mas continuava extremamente inteligente. Talvez o nascimento do irmão mais novo a fez mais ponderada. Dessa nova figurinha ainda irei de falar um dia.

No nosso último encontro trocamos referências sobre culinária, viagens e livros. Em comum temos um apreço pelos livros da série “Desventuras em Série” e pela “Turma da Mônica”. Ela me ensinou que para ser um “boy magia” e impressionar as garotas, basta eu ter um talento extraordinário como tocar em uma banda, ser muito bonito como algum dos youtubers que ela gosta ou ser muito legal. 

Ela diz que sou muito legal. Eu a apresentei bandas que gosto, como “O Terno”. A levei para dar umas voltas de metrô em São Paulo, chegando à Paulista no domingo para ver hipnose na rua, na Liberdade em um dia de muito movimento e eventos culturais e até mesmo em um show de rock pesado, esse por puro erro de percurso do tio lesado.

Não sei por quanto tempo essa relação continuará assim. Ainda tenho delírios de ser aquele tiozão jovem que poderá leva-la e busca-la de festas e shows. De poder, talvez, quem sabe, aconselhar de dores de alguns amores derrapantes. De depois poder ajudar em algum papo intelectual pretensioso sobre faculdade, carreira, medos e escolhas. Inclusive, espero que ela passe por alguns perrengues para que ela crie uma casca e seja forte para suportar esse mundo, infelizmente, muito mais desastroso e danoso do que seu talento para destrezas.

Chego à conclusão que crescer é saber ver uma criança mais criança que a gente crescendo e ter este sentimento nostálgico abobalhado que estou tendo agora. É reconhecer que uma criança mais criança que a gente não é mais criança.

Malditos sejam os filmes da Pixar.

A Chuluva Lolly faz catorze anos hoje. Em breve, o painel de controle dela será substituído por outro muito mais sólido e crítico em sua cabeça. Outras ilhas serão construídas. Dores vão surgir e a Tristeza parecerá. E que seja assim, faz parte do amadurecimento. A tristeza é inevitável quando se tem que crescer. Em breve, o mais provável, é que eu seja um tio distante e careta que escreve algumas baboseiras de vez em quando. Se for isso ou não isso, ela terá razão, afinal, sabemos que ela é muito mais esperta que eu, vide placar acima. Não importa. Ser tio e saber que ela também cresceu é bom pra dedéu.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

Eu não conheço o casal da foto, mas adoraria

Em uma quinta-feira de inverno paulistano, fui ao All of Jazz, uma loja de discos que fica no Itaim. A minha relação com essa loja, porém, já vinha de algum tempo, e assim como os melhores momentos da vida, começou de uma maneira inusitada e não planejada.
 
Seis meses antes, eu havia conseguido uma folga de uma semana na agência de publicidade em que trabalhava. Tiraria esses dias para ler uns livros da faculdade e escrever o meu TCC que ainda não havia terminado. No fim do expediente do último dia de trabalho antes dessa folga, fui ao posto de gasolina tomar uma cerveja com o meu mestre e amigo Vinícius Dalla.
 
Papo vai, papo vem, ele falou da ideia que ele estava tendo de ir à São Paulo de carro na sexta-feira da outra semana para voltar no domingo. Como as oportunidades de visitar a minha família em SP são exponencialmente escassas se comparadas com a minha vontade de ir, perguntei se ele não gostaria de alguém para dividir a gasolina. E o que era especulação, virou um “bora” seguido de outro “bora”.
 
Depois de uma semana estudando tudo o que não podia estudar no meu tempo limitado na rotina da agência, acordei cedo na sexta-feira, fiz meu famoso macarrão trip and travel, joguei tudo em um pote de sorvete, esperei o Vinição e pé na estrada. Antes fosse, porém, pé-de-pato na estrada.
 
Pegamos chuvas torrenciais em boa parte do caminho, o que nos atrasou em algumas horas. Em certo ponto da viagem, chegamos até a cogitar dormir em alguma cidade do interior e seguir passeio no outro dia bem cedo. Porém, decidimos seguir adiante naquele dia mesmo.
 
Como o horário de chegada já passaria das dez da noite, segundo nossas contas e do GPS, decidi que quando chegasse à Terra da Garoa - depois de tanta água, a garoa viria mais leve que brisa – não iria para a casa da Miriam, minha irmã, para não incomodar por conta do horário. Ao invés disso, ficaria hospedado no Did’s Hostel, no Jardim Paulista, o mesmo em que o Vinícius ficaria.
 
Para compensar todos os percalços, recorremos à internet para buscar algo para fazer ainda daquela noite. Enquanto Vinícius dirigia, eu, na posição de navegador, buscava algo que nós não acharíamos em Goiânia normalmente, e que em São Paulo, mesmo que corriqueiro, seria fenomenal para nós dois. Para unir o útil ao agradável, o plano também era que o programa não fosse tão distante do hostel. Algumas zapeadas depois no que estava rolando aquela noite, decidimos que curtir um jazz seria a dica e veio a calhar que perto do hostel havia uma loja de discos, CD’s e DVDs que teria como atração da noite Michel Freidenson Trio. Ouvimos o som do tal Michel Freidenson no YouTube e naquele ponto não tínhamos mais dúvidas de qual seria o nosso destino.
 
Após passar por uma quase que verdadeira epopeia submarina, conseguimos ao hostel chegar secos por uma cerveja e molhados por alguns pingos de chuva. Tomamos banho (me enxuguei com a camiseta que estava usando pra não ter que pagar dez reais no aluguel de uma toalha, o que horas depois não se mostrou uma boa decisão por apodrecer o quarto inteiro), vestimos nossa roupitcha agasalhada, já que fazia um pouco de frio, mesmo sendo uma noite de verão, e partimos para a noite de jazz.
 
O All of Jazz parecia uma casa de amigos. Logo na entrada, o vigia de carros tocava suavemente uma gaita. Na parte interna, me senti sendo inserido em um filme nova-iorquino escrito e dirigido pelo Woody Allen. Os frequentadores pareciam íntimos do lugar e dos músicos. Sentamos, pedimos duas Stellas e nos deleitamos. A música fluía de um jeito exuberantemente satisfatório para cada metro de asfalto encharcado que atravessamos no trajeto Goiânia-São Paulo.
 
O maestro e pianista do trio, o próprio Michel Freideson, brincava nas teclas do piano com mais facilidade que eu para raciocinar e digitar este texto ao mesmo tempo. O baixo de seis cordas me deixava completamente boquiaberto. A bateria sempre discreta, quase que uma personagem tímida e coadjuvante, ao final do show fez um solo digno da cena final do Whiplash. Durante a apresentação, alguns amigos subiram ao palco parar cantar ou tocar outros instrumentos. Me senti como uma criança assistindo os meninos mais velhos jogarem golzinho de chinelo na rua doido para que uma bola escapasse só para eu poder buscar e participar de alguma forma daquela brincadeira.
 
Seis meses adiante, na noite de quinta-feira no inverno paulistano, eu estava na minha segunda visita ao All of Jazz. Dessa vez minha estadia em São Paulo seria mais longa e minha visita a casa de jazz estava melhor programada: fui devidamente equipado com minha Nikon D3200 e lente 55mm. Diferentemente da primeira vez optei por um vinho chileno para acompanhar a atração da noite, a paraguaia Monica Elizeche cantando Billie Holiday em um lindo tributo. Logo nos primeiros goles de vinho e primeiras notas dos músicos, estava completamente anestesiado.
 
Era incrível o poder que aquele lugar tinha sobre mim.
 
O clima continuava como uma casa de amigos, dessa vez com alguns outros convidados, como um casal de japoneses sentados na mesa ao lado que estava mais preocupado em encontrar algum drink, o que só foi possível com a ajuda do dono do estabelecimento por causa do conflito do idioma. Aproveitei para tentar tirar algumas fotos de tudo. Da taça de vinho, da decoração, das notas do baixo, da expressão da cantora. Nunca fui a uma, tampouco entendo sobre, mas tudo aquilo parecia harmonicamente se encaixar com em uma ópera italiana.
 
A apresentação teve uma pausa. Aproveitei o intervalo para subir ao primeiro piso, onde funciona a loja de discos, para tirar outras fotos. Queria registrar cada ambiente, cada cartaz, cada referência. Algumas outras pessoas também subiram. Olhavam os preços, ponderavam a relação custo-benefício. Uma moça parava lia a contracapa do DVD que estava em sua mão, enquanto equilibrava uma taça de vinho com outra. Um rapaz explicava sua admiração por Tony Bennett. O frio da noite invadia o aposento através da uma porta que dava para uma varanda. Cada segundo ali me levava para um outro tempo, passado ou simplesmente não registrado, nunca existido, como num filme ou em um livro que você pode rever ou reler infinitas vezes, sempre descobrindo um novo detalhe, sempre sentindo um novo encanto.
 
Me dirigi para a varanda que dava de encontro com a noite agradável e silenciosa de São Paulo. Observei um pouco. Na rua nem pessoas e nem carros passavam. Utopia da paz. Arrisquei frustradamente tirar fotos com algum efeito legal do letreiro luminoso da casa. Olhei em volta, tentei tirar fotos do interior da loja através do vidro sujo da porta, mais frustração. Resolvi deixar a câmera de lado e apenas curtir a atmosfera noturna.
 
Foi então que reparei na única mesa da varanda. Um casal a dividia, com alguns cigarros, uma Heineken e uma garrafa de água mineral. Eu estava tão leve que, quando os percebi, fiquei feliz por eles. Devo ter sorrido. Quando já ensaiava voltar para a apresentação musical no andar de baixo, aconteceu aquela pequena coisa deslumbrante da vida que faz refletir, sonhar e desconstruir qualquer sentido que você queira dar cartesianamente às coisas.
 
Talvez por eu demorar demais o olhar sobre eles, o rapaz me chamou “ei, fotógrafo, vem cá, por favor”. Ri e cheguei perto. Ele pediu em seguida “tira uma foto da gente”. Ri sem graça e falei “olha, posso tirar, mas não sou fotógrafo da casa, só estou tirando fotos por lazer mesmo”. O camarada apaixonado respondeu rindo “não tem problema, eu só quero ter certeza que esse momento foi registrado e depois você faz o que quiser com a foto”.
 
Como tenho a mania de não dispensar pedidos inusitados – neste quase praticamente um convite para compartilhar daquele momento – tirei a foto. A foto sequer ficou esteticamente boa. Fiquei sem graça em me demorar regulando a câmera para a iluminação em que eles estavam e errei totalmente no foco. Trocamos mais alguma ideia, disse que vinha de Goiânia e era a segunda vez que eu ia a casa. Ele contou que ambos moravam perto dali, mas que ela ainda não conhecia o local e que a vontade dele era mostrar toda a magia (que magia!) do lugar. Perguntamos nossos nomes. Eu, por pura negligência e falta de talento, não me recordo do nome deles. Me apresentei com o meu segundo nome, geralmente reservado para a família.
 
Não era difícil interpretar que era um casal em início, nos primeiros encontros. Talvez fosse o primeiro encontro. Como eles se conheceram? Quanto tempo demorou para que tivessem o primeiro encontro? Quem se interessou por quem primeiro? Quanto tempo demorariam para terem a primeira briga? Será que ficariam tempo o suficiente para terem a primeira briga? E se brigaram, superaram e estão mais unidos do que nunca? Será que dividem os mesmos sonhos?  Quantos filhos vão ter? Querem ter filhos? Vão escolher, no futuro, morar na cidade grande ou vão preferir a tranquilidade do interior? Quantas vezes vão passar pelo All of Jazz, suspirar, sorrir e lembrar daquela noite? Ou será que tudo não passou de um sonho de uma noite de inverno?
 
Eu não sei nenhuma dessas respostas. Talvez seja melhor eu não saber. A beleza da vida talvez esteja nos “talvezes” e não nas precisões dos fatos. E se os fatos digam o contrário do que acabei de dizer, problema deles. E talvez simplesmente qualquer caminho seguido fosse o que deveria ser sem muita cerimônia.
 
O All of Jazz me marcou duas vezes pela beleza do acaso. Será que alguma energia ali seja inclinada para isso, como se a concentração de tantas canções atraísse os improvisos que deram certo?
 
Hoje, quase um ano da primeira visita e seis meses desse encontro, torço para que eles estejam juntos. Foi um daqueles momentos em que me fez acreditar no amor eterno, capaz de romper o inverno e chegar numa quinta-feira de verão como hoje. É como se ainda ecoasse Billie Holiday quando penso neles: “And then there suddenly appeared before me / The only one my arms will ever hold”.
 
Não sei sequer se estão vivos, tanto como indivíduos que eram, tanto como casal que estavam. Mas, por um instante, eu os eternizei nesta fotografia.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

Ninguém mexe com a quinta-feira

Quinta-feira é disparadamente o melhor dia da semana. Sem sombra de dúvidas. Sem discussão. Sem titubeios. Sem golpe e sem impeachment. Aí você, cidadão desavisado, me pergunta: não seria a sexta-feira ou sábado?

Meu caro interlocutor, vamos aos fatos: quinta-feira pura e cristalinamente é também o quase-sexta-feira. O que isso quer dizer? Quer dizer que haja o que houver, amanhã já é sexta e logo depois sábado. Não importa o que você fizer, o objetivo já está concluído, mais uma semana foi vencida.

Quase-sexta-feira é muito melhor que sexta-feira-de-fato.

Na quinta-feira, você pode sair e tomar aquele chope sem culpa, porque, quando você acordar, é manhã de sexta. Pode ser o dia seguinte ainda um dia útil, mas já sexta-feira, o dia internacional da dublagem que você só espera acabar, ali na tocaia, na maciota, na coxia do trabalho. Mas a hora na sexta-feira, meu confrade, não passa. E a noite de sexta-feira nunca é boa o bastante porque você já entra nela esperando alguma coisa que se não acontece, é só mais do mesmo. O sábado,  então, mesmo que seja bom, nunca será o suficiente e quando acaba, já é domingo, aquele dia melancólico em que o suicídio parece melhor opção do que Domingão do Faustão.

Já a injustiçada e esquecida quinta-feira sempre vai ser melhor do que parece, o dia que passa mais rápido e a noite, por mais singela que seja, vai ser maravilha. Na quinta-feira não existe gol feio. E uma boa dica é que toda quinta-feira sai a coluna do Calligaris na Folha de S. Paulo. Isso sem falar nas estreias do cinema, que eu nunca vou conferir, mas que já me deixa feliz só por existir.

Desculpem-me e, por favor, não me levem a mal, mas ninguém mexe com a minha quinta-feira.