sexta-feira, 1 de maio de 2015

A utopia do Fusca laranja

Nos idos de 2011 eu estava para completar 18 anos e esperava o resultado do vestibular. Na esquina de cima do meu prédio havia um simpático Fusca de cor laranja, com bancos de couro branco e ano de fabricação, se não me engano, 1974. Eu só saberia essa informação do seu modelo ser o de 1974 por um ou dois papéis de "vende-se" afixados nos vidros do carro, porque, pra ser sincero, não entendo muito de Fusca além de, na minha cabeça, ser o mais simpático dos carros. Também não entendo muito dos outros carros além do que vejo no programa de carros que passa domingo de manhã na Globo. De tanto o ver disponível do mercado com aquela cor bonita e brilhante e com os bancos de couro branco estilizados, eu passei a ter três sonhos: passar no vestibular, tirar a carteira de motorista e ter aquele Fusca.

Os dias se passaram, fui aprovado no vestibular, fiquei careca, meus cabelos cresceram num ritmo mais lento do que eu esperava (mas cresceram), fiquei cabeludo novamente na medida do possível e ainda não havia tirado minha CNH, muito menos chegado perto de adquirir o Fusca que teimava em permanecer em minhas vistas quase todos os dias.

Como a maioria dos meus amigos chegavam a maior idade e já iam direto para a autoescola e posteriormente, se não ganhavam seus próprios carros, tinham algum na garagem para dirigir pra lá e pra cá, eu me sentia inferiorizado. Afinal, que garota se sentiria confortável de sair e namorar com um cara sem carro?

Faltando exatamente um dia para eu completar 19 anos, eu fui aprovado na prova de volante na primeira tentativa, cometendo apenas uma infração. Fiquei muito feliz. A CNH veio - sem posts comemorativos no Facebook -, mas o Fusca laranja não. Com o tempo o Fusca desapareceu da esquina de cima do meu prédio e provavelmente faz a alegria de um novo dono ou do dono que desistiu da ideia de vender aquela preciosidade.

Com os dias também me veio uma outra consciência. A autoestima por não ter um carro não mais ficou abalada. Do dia em que recebi minha primeira CNH até hoje não passam de duas dezenas o número de vezes que fui ao volante. Nos últimos 730 dias dirigi apenas duas vezes. Não sou o que pode ser chamado de motorista experiente, mas das vezes que encarei o mundo dos automóveis eu não entendi mais a minha antiga tara por dirigir, tendo em vista um mundo de tanto estresse depois de um dia igualmente estressante de trabalho, com buracos, barbeiros (coitado dos barbeiros por terem sua profissão associado aos maus motoristas), riscos e combustível com valores surreais.

Não sou quadrado a ponto de não saber que existe todo o conforto de você ter um banco acolchoado só para você, ar condicionado na maioria dos casos hoje em dia, uma música tocando, a liberdade de poder usá-lo no horário que bem entender para as rotas que você escolher, a sensação de controlar uma máquina e tê-lo em casos de emergência. Mas quando me lembro que o carro surgiu com a incrível função de levar alguém do ponto A ao ponto B (creio que não deixou de ser sua principal função), mesmo para os que acreditam que surgiu como um instrumento de dança do acasalamento em um sinal de pura virilidade, ou ainda para ser um iPod gigante impositivo de músicas eletrônicas e sertanejas, me parece que todos os confortos são mais propagandas que levam ao vício do que necessidades.

Essa semana eu já vinha discutindo isso pela enésima vez. Talvez seja o meu Eduardo Jorge feelings, mas vejo outras formas de mais vantajosas de me locomover do ponto A ao ponto B. Goiânia, por mais que não seja uma cidade estruturada para os ciclistas sem as sinalizações e demarcações necessárias, é uma cidade com uma topografia relativamente plana, o que favorece ao ciclismo. Moro em uma boa localização relativa aos meus trabalhos, lazeres e necessidades de serviços. Tudo isso possibilita que grande parte dos afazeres da minha rotina sejam possíveis de serem feitas a pé ou de bicicleta. Para distâncias mais longas, desfruto do Passe Livre Estudantil disponível em Goiás. Mesmo na época em que não havia o passe livre, a passagem de ônibus para estudantes saía pela metade do preço (claro, essa "metade do preço" seria, na verdade, o máximo que deveriam cobrar da população em geral). Por fim, em casos mais urgentes ou em horários que demandam maior atenção com a segurança, o táxi se torna a alternativa tendo em vista que, por mais que seja um serviço com um preço mais salgado, com a frequência de uso se torna completamente viável.

Tabela retirada da reportagem "Vou de carro? do jornal Valor Econômico do dia 29/04/2015
Por conveniência e coincidência, o jornal Valor Econômico desta quarta-feira trouxe na matéria "Vou de carro?" um estudo sobre o quanto custava usar um carro na cidade de São Paulo, levando em conta fatores como depreciação, combustível, licenciamento, seguro, IPVA, manutenção e estacionamento. Para efeitos de comparação, São Paulo é uma cidade dez vezes maior que Goiânia, com um custo de vida mais alto, mas o parâmetro é válido e totalmente palpável. Peguei para fazer os cálculos algumas rotinas de trabalho de algumas pessoas como exemplo. Um dos custos que calculei, juntando o valor de se manter o carro que percorre em média 22,5 km por dia útil com o valor do próprio veículo, daria algo em torno de quase R$4 mil reais por mês. No mês de abril eu gastei R$36,00 com transporte ao pegar um táxi. 

Na minha lógica, ter um carro é como ter um filho. Se você é pai ou mãe de dois filhos e dá para eles um automóvel quando eles completam 18 anos sem que eles tenham condições de arcar com as despesas, você está comprando para si dois netinhos com pais que saíram para comprar cigarros e nunca mais voltaram. Ou seja, assim que seus filhos viram adultos, você vive a nostalgia de ter despesas com crianças outra vez, mas que bebem gasolina ao invés de beberem leite com Toddy.

Não estou demonizando uso de carros. Essa é apenas uma análise que carro ainda não faz muito sentido na minha vida. É verdade que sou um homem branco de classe média, que mora em um dos bairros mais estruturados de uma metrópole e que tem um tipo de necessidade que pode ser atendida de outras formas com relativa segurança e comodidade. É verdade também que o transporte público que percorre o asfalto cheio de buracos daqui não é muito diferente em qualidade do que o conteúdo que corre nos esgotos da cidade. Não nego que em dias de chuva é deprimente percorrer do ponto A ao ponto B de ônibus, a pé ou de bicicleta (paro para lembrar que Goiânia não é uma cidade que pode se chamar de chuvosa, principalmente durante os nossos 6 meses de seca anuais).

Mas será que muitos outros que usam carros têm uma necessidade tão diferente da minha? Será que não usam carro com mesmo costume (ou TOC) que optam pelo elevador ao invés da escada? Será que não ficaram viciados em percorrer distâncias estupidamente curtas queimando combustível e poluindo o ambiente, não só com gases, mas também com barulhos e ocupação espacial?

Quando saio a pé do ponto A ao ponto B, dependendo do tempo que tenho disponível, paro para descobrir Goiânia. Sempre há novas rotas, novas percepções, novas arquiteturas, novas árvores, novos pensamentos, novas inspirações. Sei que esse tipo de consciência não surgiu de maneira espontânea, foi fruto de, talvez, querer uma coisa e não poder tê-la Mas que bom que um momento eu parei para pensar "por que eu quero ter um carro mesmo?". Sei que há pessoas e famílias que têm condições de manter esses carros, as vezes com um carro pra cada membro da família, sem que seja um grande rombo no orçamento. Mas sei também que muitos sentem no bolso o luxo que é ter um carro, seja por necessidade ou status.

Um dia, quem sabe, terei um carro. E quem sabe esse carro não possa ser um Fusca laranja parecido com o que eu via na esquina. Não sei dizer. Mas nesse dia espero continuar com a mesma consciência e não fazer uso de maneira desenfreada e inconsequente. Até lá, continuarei pegando ônibus, indo a pé, pedalando ou de táxi. Também sou aquele ótimo amigo que quando for o caso de uma carona, racho a gasosa e o estacionamento. 

Só considero que pensar um pouco sobre o assunto e mudar as atitudes é mudar o mundo. Afinal, a mudança está nas atitudes e não nas utopias de sonhos mal sonhados.