sexta-feira, 23 de setembro de 2016

Buongiorno

“Take the lotus flowers into my room
Slowly we unfurl
As lotus flowers”.

(Radiohead)


Nos primeiros raios de sol,
As pestanas preguiçosas se abrem.
Nos olhos grandes como um farol,
Pra luz tímida na penumbra captarem.
 

Agora é a hora do desafio
Levanta.
Olha a cabeça.
Opa!
Um braço.
Outro braço.
Uma perna.
A outra perna como um compasso.
E deixa pra traz o berço.

Agora é a próxima fase:
Desvia dos sapatos,
Cuidado pra não cair,
Passo curtinho pra sair na maciota.
Gira a fechadura da porta e...
Saí!
Mais um pouco já é do lado de fora.
Já passei da sala.
Vira a direita nesta ala.
Abre a porta do corredor que dá pro terraço...
Shiiiu!
Ufa, ninguém ouviu!
Só mais um pouquinho.
Agora é só subir
Na cadeira de balanço.

E olhar para fora.
E olhar pro quintal.
E meditar.
E encontrar a paz.
E encontrar o amor.
E encontrar Deus.
E no ritmo do balanço
Simplesmente balançar.
Como num barco
Em direção ao seu cais.
 

E nos segundos raios de sol,
Forçar as pestanas agora pesadas.
Para contemplar grande palmeira
E as flores da vovó.
Pela última vez
Antes de finalmente
Poder fechar os olhos
E voltar a dormir como um rei.

domingo, 4 de setembro de 2016

Assalto Romântico

Ontem estava voltando pra casa a pé de madrugada, em Goiânia, a cidade mais segura do mundo, como muitas vezes faço. Eu usando bermuda, chinelo, camiseta simples e portando uma cara extremamente amassada. Só não estava portando o meu celular, o que fez com que, não sei porquê, aumentasse a sensação de segurança, vai entender. Todavia, até aí tudo bem.

Foi então que dois gentis assaltantes montados em uma admirável Honda Biz e em suas funções do dever me abordaram. O carona desceu, sussurrou romanticamente em meu ouvido "passa o celular, vagabundo" e logo acariciou meus bolsos em busca deste tão cobiçado aparelho da pós-modernidade. Em um gesto de carinho e reciprocidade, ergui meus braços vagarosamente e respondi a esta investida sem convites para jantar com um "já fui assaltado hoje", só para fazer aquele charminho de como quem quer dizer "você demorou demais pra aparecer em mim vida, baby", sabe como é, né?

Na falta de “esperto-fone”, o cavalheiresco meliante permitiu-se adentrar com sua mão em meu bolso (ui!) para sacar a minha carteira, lotada de papeis, recibos, cartões de visita e cartões de crédito estourados. Nessa hora a emoção bateu forte. Tive até vontade de aproveitar as minhas mãos que estavam no ar e abraça-lo em gratidão por toda a gentileza e pelo ato libertador de me levar navalhas de cheque especial. Mas o gentleman burglar quebrou todo o clima ao resolver avançar o sinal e levar também meus óculos de grau, os redondinhos que fazem com que eu seja comparado ao John Lennon ou ao Harry Potter, que estavam no mesmo bolso da carteira. Poxa, oclinhos, que bela hora pra estar no lugar errado e na hora errada, heim?

Como já não estava rolando mais nenhum clima entre a gente e por isso já não fazia mais sentido em continuar com esse romance, o nobre senhor ladrão voltou para seu posto em sua Honda Biz, que a essa altura já me parecia um verdadeiro Pegasus. Porém, em um sinal de que não havia ressentimento da parte dele comigo, benevolentemente ele demonstrou total preocupação com minha longevidade me dando uma importante dica de saúde ao se despedir com um "corre, vagabundo, corre!", que preferi entender como um "run, Forrest, run!". Fala sério, quem nunca quis ser o Forrest Gump uma vez na vida? E pra provar que eu estava em forma, tentei dar um pique Usain Bolt, mas como estava calçando chinelos, devo ter parecido mais um Romário treinando pós-rodada do Brasileirão nos anos 90.

Cheguei em casa, cancelei meus cartões de crédito porque não queria que senhores tão gentis passassem o constrangimento de andarem por aí com cartões negativado e disquei o 190 que, com muita classe, prontamente nada fizeram para me ajudar. Aí olhei pra minha cama, ela olhou pra mim e lá embarcamos no mundo dos sonhos.

Hoje pela manhã acordei com aquela vontade linda de viver o domingão, vestir shorts largos, por um boné e comprar o pão, mortadela e o jornal. Mas aí me lembrei de que não tinha mais carteira para fazer compras e nem óculos para ler as últimas do diário de notícias. Infelizmente, meu gazeteiro favorito deve ter sentido a minha falta hoje.

Foi então que surpreendentemente minha ex-namorada, que não falava comigo há tempos, me chama no Facebook: "Anderson! Você foi assaltado?!". Logo pensei que conexões reais nunca desconectam, afinal, como ela pode ter tamanho poder de adivinhação? Fé em Deus e a fé na vida renovadas, ela me informa que tinham achado minha carteira e meus óculos redondos. Peguei o contato do anjo da guarda dos utensílios roubados e voilà! Coloquei meu capacete, subi na minha magrelinha e sebo nas canela.

Impressionantemente estava tudo lá: carteira com muitos papéis e cartões aparentemente inúteis e os óculos, um pouco mais tortos e trincados que antes, mas bons o suficiente para me deixarem enxergar o que escrevo agora. A moça que encontrou minhas coisas e prontamente ofereceu ajuda para que o resgate de tudo o que foi surrupiado de meus bolsos fosse feito, logo me mostrou o que me proporcionou este encontro: um papel que em um primeiro momento parecia inútil, mas que tinha alguns números de telefone anotados para caso de emergência, que eu havia escrito muito tempo antes em uma viagem e nunca tirei de lá de dentro.

Agora tudo faz sentido. Vemos claramente que a minha displicência em acumular papeis que não são papéis-moedas em minha já grossa carteira não foi tão inútil assim. E agora quero passar este hábito para o mundo: deixem sempre na carteira de vocês um papel com o número de seu melhor amigo ou sua melhor amiga, seu namorado ou namorada, marido ou esposa, irmãos, pais, enfim, de quem quer que seja, que você talvez consiga recuperar sua carteira de motorista e seus cartões de crédito estourados, assim como eu consegui.

Dica dada, a última lição do dia é para os ladrões que querem aperfeiçoar e melhorar a imagem dessa classe tão trabalhadora: da próxima vez, não assaltem um fodido como eu, que a desilusão pode ser muito grande.