Duas situações esta semana me levaram a refletir o que é o crescer para uma criança.
Domingo dei aquela sorte de estar zapeando a TV e encontrar um filme começando naquele instante. Era a animação da Pixar “Divertida Mente”. O filme consiste no que se passa nos bastidores na cabeça de uma menina, Riley, em suas primeiras experiências com o mundo. O que vou relatar a seguir mais tem a ver com o enredo e uma interpretação de uma criança grande que sou a respeito da animação e do que um spoiler.
Sentimentos como alegria, tristeza, medo, raiva e nojo são muito claros e personificados na cabeça de Riley, assim como as referências que circulam o seu mundo e a sua rotina, se tornando ilhas. Na medida em que em que ela cresce, pensamentos e lembranças são armazenados. Quando as prateleiras de pensamentos estão cheias e caem em desuso, elas são esvaziadas para o lixão da mente. Tudo muda, porém, quando seus pais decidem se mudar de Minnesota para São Francisco.
Coincidentemente, esta mudança se dá quando Riley está em sua pré-adolescência, prestes a entrar em uma fase de mudanças, incertezas e transformações: aos poucos, a infância inevitavelmente será deixada de lado. Velhas brincadeiras são esquecidas, a formação moral é questionada e comportamentos sapecas típicos de crianças são esquecidos. As ilhas começam a se desmoronar.
Coincidentemente, esta mudança se dá quando Riley está em sua pré-adolescência, prestes a entrar em uma fase de mudanças, incertezas e transformações: aos poucos, a infância inevitavelmente será deixada de lado. Velhas brincadeiras são esquecidas, a formação moral é questionada e comportamentos sapecas típicos de crianças são esquecidos. As ilhas começam a se desmoronar.
Da mesma forma, sentimentos antes tão bem definidos ganham nova roupagem: alegria e tristeza nunca foram tão confundíveis, a raiva ganha mais poder de decisão do que o medo e o nojo começa a moldar certas relações sociais. Algumas habilidades perdem força e outras habilidades surgem para atender a demanda de novas necessidades sociais. A mente, da mesma forma, ganha novo painel de controle, uma versão expandida para novos conteúdos antes jamais cogitados. Novas ilhas surgem como referência de vida.
Riley estava a um passo de apertar o botão da puberdade.
Dias antes de assistir esse filme, na semana passada, uma amiga me perguntou se quando criança eu brincava de ser publicitário. Parei para pensar nas minhas brincadeiras. Em um primeiro momento, lembro de brincar solitariamente com meus carrinhos e bonecos no chão da sala da minha antiga casa no Setor Pedro Ludovico.
Dias antes de assistir esse filme, na semana passada, uma amiga me perguntou se quando criança eu brincava de ser publicitário. Parei para pensar nas minhas brincadeiras. Em um primeiro momento, lembro de brincar solitariamente com meus carrinhos e bonecos no chão da sala da minha antiga casa no Setor Pedro Ludovico.
Por um estalo, busquei nas prateleiras empoeiradas das minhas lembranças uma quase esquecida, dá época em que eu passava as férias em Natal na casa dos meus avós. Eu e minha prima Fernanda costumávamos ir até o meu antigo quarto, que virou uma espécie de quarto de hóspedes e escritório do meu avô (o homem mais velho que eu conhecia na época) para buscar livros e revistas para brincar de banca de jornal. Nós mesmos confeccionávamos as cédulas de dinheiro, com papel sulfite, giz de cera e tesoura. Por vezes, eu era o dono da banca e ela era a cliente. Quando enjoávamos das nossas funções, mudávamos de posto.
Quando consegui resgatar essa lembrança, me peguei sorrindo e bateu uma saudade inesperada dessas brincadeiras. E me perguntei também quando foi que parei com elas, quando deixei de brincar com os bonecos que sempre dormiam junto comigo na cama, quando deixei a futura e promissora carreira de melhor vendedor de revistas do Bairro do Bom Pastor para trás. Sinceramente não me recordo e não encontro a data exata em nenhuma das prateleiras da minha mente.
Mas uma outra brincadeira, talvez a mais incrível de todas, também aconteceu nas férias que passava em Natal.
Mas uma outra brincadeira, talvez a mais incrível de todas, também aconteceu nas férias que passava em Natal.
Minha família é uma tradicional família brasileira: pai com filhos fora do casamento original, irmãos com grande diferença de idade, mudanças de cidade e distância geográfica. Nestas aventuras, fui tio muito cedo. Quando eu tinha três anos, minha irmã Alessandra teve seu filho, Juninho. Foi difícil, mas creio que consegui cumprir árdua missão de ser tio tão precocemente. Imagina, uma criança de seis anos ter que explicar para uma de três o jeito certo de brincar de carrinhos? Confesso que em alguns momentos pensei em desistir da minha função do dever.
Com o tempo, infelizmente, acabamos perdendo este contato e esta interação.
Anos mais tarde, foi a vez da minha irmã Miriam ser mãe. Quando ela engravidou, eu tinha nove anos. Dessa vez pude acompanhar, mesmo que na distância, o desenvolvimento da Laiz, desde as ultrassonografias, até seu nascimento e parte do seu crescimento.
Tive o primeiro contato com a Lolly quando ela já tinha por volta de três anos eu dos treze. Pensei comigo mesmo “sobrinho de três anos eu já tiro de letra”. Pobre criatura ingênua que eu era. Ela era uma criatura muito mais esperta e astuciosa. As ilhas dela estavam melhores estruturadas do que as minhas. Logo vamos entender o porquê.
Eu, na prática, era totalmente sem jeito. Ela era um projeto de menina paulistana mimada, com um sotaque já forte (imagine este “forte” com aquele “r” paulistano da MTV). Quando se sentia desconfortável ou algo não vinha como ela queria, a Tristeza entrava em ação, tomava o painel de controle e ela chorava. Ao mesmo tempo, ela era extremamente divertida e lúdica. Como não se encantar pela pequena Laiz?
Íamos muito à praia. Ela usava pequenas chinelas Havaianas que tinha desenhos de uvas. Em uma tentativa de fazer amizade, a ajudei a calçar os chinelos, cheirei seus pequenos pés e fiz careta. Ela me perguntou “o que foi?”. Eu disse “chuluva!”. Ela estranhou: “chuluva?”. Ri por dentro e disse. “É, chulé de uva”. Ela riu por fora. Na mosca: eu começava a ganhar território.
Ao conseguir ganhar pontos, ganhava também a responsabilidade de ficar mais tempo com a pequena e dar mais descanso aos pais e avós. Uma dessas tarefas foi tentar fazer com que ela cochilasse após o almoço. Sugeri o desafio do jogo da imitação. O jogo consistia em, cada um em sua vez, propor alguma imitação. De gatinho a leão, de cachorro a dinossauro, quem imitasse melhor, ganharia o ponto. Em uma determinada rodada, malandramente propus o desafio de quem imitava melhor alguém dormindo. Ela deitou na cama, eu no chão e começamos o fingimento. Depois de cinco minutos, prevendo que meu plano infalível tinha funcionado, levantei e fui orgulho dizer para Mirinha que eu consegui colocar a Laiz para dormir. Nosso triunfo não durou trinta segundos quando ela apareceu na porta prontamente acordada. Falhei.
Outro dia, indo à praia, sentei no banco de traz do carro ao lado da cadeirinha de criança em que Laiz estava e comecei a brincar com ela como se ela fosse um piano e disse “nossa, esse piano está enguiçado, não faz barulho”. Rapidamente ela protestou “eu não sou um piano!”. Eu disse “se não é um piano é um teclado”. Mais protestos “eu não sou um teclado!!”. Parei. A encarei e a perguntei “ué, então o que você é?”. A resposta veio feliz da vida “sou uma menina!”. Nessa saímos empatados.
Na praia, a marra e a manha da pequena Lolly continuavam. Fiquei brincando com ela, fazendo castelos de areia, enquanto minha irmã e meu cunhado saíram para caminhar um pouco. Ao perceber que os pais não estavam por perto, ela entrou em desespero e a Tristeza mais uma vez entrou em ação. Ela chorava e dizia que queria os pais. Impotente, tentei a acalmar propondo para irmos procurá-los. Ela topou e segurou a minha mão.
Naquele instante ocorreu incrível dentro de mim, vendo o quanto uma criaturinha daquele tamanho poderia cativar.
Poucos metros de caminhada depois, a danada reclamou que a areia estava quente e que estava cansada. A coloquei no colo e a carreguei mais como um saco de batatas do que como a menina-piano que ela era. Ponto para Laiz.
Depois daquele verão, algumas semanas depois, completei catorze anos e vivi, talvez, o primeiro ano de transformação do que sou hoje. Provavelmente foi nessa mesma época em que parei de brincar com carrinhos e bonecos. Provavelmente, depois dessas férias, nunca mais brinquei de banca de jornal com a minha prima, se é que nessas férias ainda brincávamos disso.
Demorei alguns anos para reencontrar a Laiz. Ela já estava grande. Não era mais uma menina mimada, mas continuava extremamente inteligente. Talvez o nascimento do irmão mais novo a fez mais ponderada. Dessa nova figurinha ainda irei de falar um dia.
No nosso último encontro trocamos referências sobre culinária, viagens e livros. Em comum temos um apreço pelos livros da série “Desventuras em Série” e pela “Turma da Mônica”. Ela me ensinou que para ser um “boy magia” e impressionar as garotas, basta eu ter um talento extraordinário como tocar em uma banda, ser muito bonito como algum dos youtubers que ela gosta ou ser muito legal.
Ela diz que sou muito legal. Eu a apresentei bandas que gosto, como “O Terno”. A levei para dar umas voltas de metrô em São Paulo, chegando à Paulista no domingo para ver hipnose na rua, na Liberdade em um dia de muito movimento e eventos culturais e até mesmo em um show de rock pesado, esse por puro erro de percurso do tio lesado.
Não sei por quanto tempo essa relação continuará assim. Ainda tenho delírios de ser aquele tiozão jovem que poderá leva-la e busca-la de festas e shows. De poder, talvez, quem sabe, aconselhar de dores de alguns amores derrapantes. De depois poder ajudar em algum papo intelectual pretensioso sobre faculdade, carreira, medos e escolhas. Inclusive, espero que ela passe por alguns perrengues para que ela crie uma casca e seja forte para suportar esse mundo, infelizmente, muito mais desastroso e danoso do que seu talento para destrezas.
Chego à conclusão que crescer é saber ver uma criança mais criança que a gente crescendo e ter este sentimento nostálgico abobalhado que estou tendo agora. É reconhecer que uma criança mais criança que a gente não é mais criança.
Malditos sejam os filmes da Pixar.
A Chuluva Lolly faz catorze anos hoje. Em breve, o painel de controle dela será substituído por outro muito mais sólido e crítico em sua cabeça. Outras ilhas serão construídas. Dores vão surgir e a Tristeza parecerá. E que seja assim, faz parte do amadurecimento. A tristeza é inevitável quando se tem que crescer. Em breve, o mais provável, é que eu seja um tio distante e careta que escreve algumas baboseiras de vez em quando. Se for isso ou não isso, ela terá razão, afinal, sabemos que ela é muito mais esperta que eu, vide placar acima. Não importa. Ser tio e saber que ela também cresceu é bom pra dedéu.
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