quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

Eu não conheço o casal da foto, mas adoraria

Em uma quinta-feira de inverno paulistano, fui ao All of Jazz, uma loja de discos que fica no Itaim. A minha relação com essa loja, porém, já vinha de algum tempo, e assim como os melhores momentos da vida, começou de uma maneira inusitada e não planejada.
 
Seis meses antes, eu havia conseguido uma folga de uma semana na agência de publicidade em que trabalhava. Tiraria esses dias para ler uns livros da faculdade e escrever o meu TCC que ainda não havia terminado. No fim do expediente do último dia de trabalho antes dessa folga, fui ao posto de gasolina tomar uma cerveja com o meu mestre e amigo Vinícius Dalla.
 
Papo vai, papo vem, ele falou da ideia que ele estava tendo de ir à São Paulo de carro na sexta-feira da outra semana para voltar no domingo. Como as oportunidades de visitar a minha família em SP são exponencialmente escassas se comparadas com a minha vontade de ir, perguntei se ele não gostaria de alguém para dividir a gasolina. E o que era especulação, virou um “bora” seguido de outro “bora”.
 
Depois de uma semana estudando tudo o que não podia estudar no meu tempo limitado na rotina da agência, acordei cedo na sexta-feira, fiz meu famoso macarrão trip and travel, joguei tudo em um pote de sorvete, esperei o Vinição e pé na estrada. Antes fosse, porém, pé-de-pato na estrada.
 
Pegamos chuvas torrenciais em boa parte do caminho, o que nos atrasou em algumas horas. Em certo ponto da viagem, chegamos até a cogitar dormir em alguma cidade do interior e seguir passeio no outro dia bem cedo. Porém, decidimos seguir adiante naquele dia mesmo.
 
Como o horário de chegada já passaria das dez da noite, segundo nossas contas e do GPS, decidi que quando chegasse à Terra da Garoa - depois de tanta água, a garoa viria mais leve que brisa – não iria para a casa da Miriam, minha irmã, para não incomodar por conta do horário. Ao invés disso, ficaria hospedado no Did’s Hostel, no Jardim Paulista, o mesmo em que o Vinícius ficaria.
 
Para compensar todos os percalços, recorremos à internet para buscar algo para fazer ainda daquela noite. Enquanto Vinícius dirigia, eu, na posição de navegador, buscava algo que nós não acharíamos em Goiânia normalmente, e que em São Paulo, mesmo que corriqueiro, seria fenomenal para nós dois. Para unir o útil ao agradável, o plano também era que o programa não fosse tão distante do hostel. Algumas zapeadas depois no que estava rolando aquela noite, decidimos que curtir um jazz seria a dica e veio a calhar que perto do hostel havia uma loja de discos, CD’s e DVDs que teria como atração da noite Michel Freidenson Trio. Ouvimos o som do tal Michel Freidenson no YouTube e naquele ponto não tínhamos mais dúvidas de qual seria o nosso destino.
 
Após passar por uma quase que verdadeira epopeia submarina, conseguimos ao hostel chegar secos por uma cerveja e molhados por alguns pingos de chuva. Tomamos banho (me enxuguei com a camiseta que estava usando pra não ter que pagar dez reais no aluguel de uma toalha, o que horas depois não se mostrou uma boa decisão por apodrecer o quarto inteiro), vestimos nossa roupitcha agasalhada, já que fazia um pouco de frio, mesmo sendo uma noite de verão, e partimos para a noite de jazz.
 
O All of Jazz parecia uma casa de amigos. Logo na entrada, o vigia de carros tocava suavemente uma gaita. Na parte interna, me senti sendo inserido em um filme nova-iorquino escrito e dirigido pelo Woody Allen. Os frequentadores pareciam íntimos do lugar e dos músicos. Sentamos, pedimos duas Stellas e nos deleitamos. A música fluía de um jeito exuberantemente satisfatório para cada metro de asfalto encharcado que atravessamos no trajeto Goiânia-São Paulo.
 
O maestro e pianista do trio, o próprio Michel Freideson, brincava nas teclas do piano com mais facilidade que eu para raciocinar e digitar este texto ao mesmo tempo. O baixo de seis cordas me deixava completamente boquiaberto. A bateria sempre discreta, quase que uma personagem tímida e coadjuvante, ao final do show fez um solo digno da cena final do Whiplash. Durante a apresentação, alguns amigos subiram ao palco parar cantar ou tocar outros instrumentos. Me senti como uma criança assistindo os meninos mais velhos jogarem golzinho de chinelo na rua doido para que uma bola escapasse só para eu poder buscar e participar de alguma forma daquela brincadeira.
 
Seis meses adiante, na noite de quinta-feira no inverno paulistano, eu estava na minha segunda visita ao All of Jazz. Dessa vez minha estadia em São Paulo seria mais longa e minha visita a casa de jazz estava melhor programada: fui devidamente equipado com minha Nikon D3200 e lente 55mm. Diferentemente da primeira vez optei por um vinho chileno para acompanhar a atração da noite, a paraguaia Monica Elizeche cantando Billie Holiday em um lindo tributo. Logo nos primeiros goles de vinho e primeiras notas dos músicos, estava completamente anestesiado.
 
Era incrível o poder que aquele lugar tinha sobre mim.
 
O clima continuava como uma casa de amigos, dessa vez com alguns outros convidados, como um casal de japoneses sentados na mesa ao lado que estava mais preocupado em encontrar algum drink, o que só foi possível com a ajuda do dono do estabelecimento por causa do conflito do idioma. Aproveitei para tentar tirar algumas fotos de tudo. Da taça de vinho, da decoração, das notas do baixo, da expressão da cantora. Nunca fui a uma, tampouco entendo sobre, mas tudo aquilo parecia harmonicamente se encaixar com em uma ópera italiana.
 
A apresentação teve uma pausa. Aproveitei o intervalo para subir ao primeiro piso, onde funciona a loja de discos, para tirar outras fotos. Queria registrar cada ambiente, cada cartaz, cada referência. Algumas outras pessoas também subiram. Olhavam os preços, ponderavam a relação custo-benefício. Uma moça parava lia a contracapa do DVD que estava em sua mão, enquanto equilibrava uma taça de vinho com outra. Um rapaz explicava sua admiração por Tony Bennett. O frio da noite invadia o aposento através da uma porta que dava para uma varanda. Cada segundo ali me levava para um outro tempo, passado ou simplesmente não registrado, nunca existido, como num filme ou em um livro que você pode rever ou reler infinitas vezes, sempre descobrindo um novo detalhe, sempre sentindo um novo encanto.
 
Me dirigi para a varanda que dava de encontro com a noite agradável e silenciosa de São Paulo. Observei um pouco. Na rua nem pessoas e nem carros passavam. Utopia da paz. Arrisquei frustradamente tirar fotos com algum efeito legal do letreiro luminoso da casa. Olhei em volta, tentei tirar fotos do interior da loja através do vidro sujo da porta, mais frustração. Resolvi deixar a câmera de lado e apenas curtir a atmosfera noturna.
 
Foi então que reparei na única mesa da varanda. Um casal a dividia, com alguns cigarros, uma Heineken e uma garrafa de água mineral. Eu estava tão leve que, quando os percebi, fiquei feliz por eles. Devo ter sorrido. Quando já ensaiava voltar para a apresentação musical no andar de baixo, aconteceu aquela pequena coisa deslumbrante da vida que faz refletir, sonhar e desconstruir qualquer sentido que você queira dar cartesianamente às coisas.
 
Talvez por eu demorar demais o olhar sobre eles, o rapaz me chamou “ei, fotógrafo, vem cá, por favor”. Ri e cheguei perto. Ele pediu em seguida “tira uma foto da gente”. Ri sem graça e falei “olha, posso tirar, mas não sou fotógrafo da casa, só estou tirando fotos por lazer mesmo”. O camarada apaixonado respondeu rindo “não tem problema, eu só quero ter certeza que esse momento foi registrado e depois você faz o que quiser com a foto”.
 
Como tenho a mania de não dispensar pedidos inusitados – neste quase praticamente um convite para compartilhar daquele momento – tirei a foto. A foto sequer ficou esteticamente boa. Fiquei sem graça em me demorar regulando a câmera para a iluminação em que eles estavam e errei totalmente no foco. Trocamos mais alguma ideia, disse que vinha de Goiânia e era a segunda vez que eu ia a casa. Ele contou que ambos moravam perto dali, mas que ela ainda não conhecia o local e que a vontade dele era mostrar toda a magia (que magia!) do lugar. Perguntamos nossos nomes. Eu, por pura negligência e falta de talento, não me recordo do nome deles. Me apresentei com o meu segundo nome, geralmente reservado para a família.
 
Não era difícil interpretar que era um casal em início, nos primeiros encontros. Talvez fosse o primeiro encontro. Como eles se conheceram? Quanto tempo demorou para que tivessem o primeiro encontro? Quem se interessou por quem primeiro? Quanto tempo demorariam para terem a primeira briga? Será que ficariam tempo o suficiente para terem a primeira briga? E se brigaram, superaram e estão mais unidos do que nunca? Será que dividem os mesmos sonhos?  Quantos filhos vão ter? Querem ter filhos? Vão escolher, no futuro, morar na cidade grande ou vão preferir a tranquilidade do interior? Quantas vezes vão passar pelo All of Jazz, suspirar, sorrir e lembrar daquela noite? Ou será que tudo não passou de um sonho de uma noite de inverno?
 
Eu não sei nenhuma dessas respostas. Talvez seja melhor eu não saber. A beleza da vida talvez esteja nos “talvezes” e não nas precisões dos fatos. E se os fatos digam o contrário do que acabei de dizer, problema deles. E talvez simplesmente qualquer caminho seguido fosse o que deveria ser sem muita cerimônia.
 
O All of Jazz me marcou duas vezes pela beleza do acaso. Será que alguma energia ali seja inclinada para isso, como se a concentração de tantas canções atraísse os improvisos que deram certo?
 
Hoje, quase um ano da primeira visita e seis meses desse encontro, torço para que eles estejam juntos. Foi um daqueles momentos em que me fez acreditar no amor eterno, capaz de romper o inverno e chegar numa quinta-feira de verão como hoje. É como se ainda ecoasse Billie Holiday quando penso neles: “And then there suddenly appeared before me / The only one my arms will ever hold”.
 
Não sei sequer se estão vivos, tanto como indivíduos que eram, tanto como casal que estavam. Mas, por um instante, eu os eternizei nesta fotografia.

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